Em Homenagem aos 83 anos da Ilha, eu, o Profeta Gosma, escrevi uma série de três ensaios. Sport, uma razão para resistir é o título da série. Estão todos aqui no Blog da Aconchego. Começamos com A Ilha, depois Chegando lá na Ilha do Retiro e agora a despedida, Com o Sport Eternamente Estarei. Obrigado à Rádio Aconchego pela oportunidade!
Os ingressos mais baratos da Ilha estão na faixa dos 40 reais. Para os sócios torcedores, as mensalidades mais em conta seguem nessa faixa, com direito a descontos e preferência na aquisição do ingresso. Pesado para o orçamento da classe trabalhadora, ainda mais se considerarmos o custo elevado do transporte público e dos produtos na dependência dos clubes. Ir ao estádio para a maioria dos torcedores e torcedoras é um sacrifício econômico na pior crise do capitalismo.
A ideia do sócio torcedor nos clubes brasileiros avança com uma mentalidade de que os torcedores e torcedoras devem encarar o futebol como um serviço prestado pelo seu clube. Em outras palavras, é sofrer calado com o boleto em dia. A sugestão que vem de cima é do torcer comportado para não atrapalhar o verdadeiro espetáculo, limitado às quatro linhas.
Na Ilha do Retiro, os sócios torcedores, esse híbrido, têm a obrigação de manter os seus pagamentos em dia e desfrutar de algumas vantagens, essa é a parte sócio, já a parte torcedor sofre igual com a indiferença do clube quando, por exemplo, é vítima de violência institucional. Logo compartilham a invisibilidade dos torcedores e torcedoras não associadas, assim como os mesmos setores da Ilha. A parte torcedor que agrega à parte sócio é traduzida em fidelidade corporativa.
Diante das condições urbanas do Recife, capital de um estado no Nordeste brasileiro, periferia da periferia, concentradora de desigualdades extremas, o risco é altíssimo para não quem não pode bancar sua segurança privada e não conta com o atendimento VIP da segurança pública. Realmente o estado não é capaz de proteger torcedores e torcedoras. E os clubes não se importam.
No caso de um dirigente fascista na presidência de um clube, a natureza genocida da segurança pública pode receber elogios. Enquanto as torcidas são muitas vezes massacradas pela polícia militar, que atende ao seu papel histórico de perseguir e exterminar corpos estigmatizados como perigosos e vadios.
No caso das torcidas organizadas e uniformizadas, o sacrifício pode ser ainda maior. Consumidas pelas massas basicamente pelo prisma da violência urbana e passíveis dos estigmas reservados à juventude periférica, praticamente não possuem direitos na Ilha. Devem aceitar tudo em nome da ordem apenas por sua presença ser tolerada ali. Provavelmente não seria diferente em outros ambientes sociais do Recife.
A conjuntura vai apresentando um debate sobre os sacrifícios dos torcedores e torcedoras empenhadas no movimento antifascista. Vale registrar que a estratificação social e a organização política das torcidas, torcedores e torcedoras; as relações entre as torcidas, delas com a diretoria do clube, estado, partidos e coletivos políticos; com os elencos, atletas, comissões técnicas e a camada dos funcionários do clube são fatores relevantes para compreensão do ato de torcer. É intrigante perceber que as manifestações dessas demandas políticas no futebol pernambucano contribuem menos para a democratização dos clubes do que para alavancar biografias, enriquecer indevidamente um punhado e fornecer matéria prima para projetos acadêmicos e jornalísticos ensimesmados.
Dessa forma, permanece a noção equívoca da torcida como um bloco homogêneo a fornecer uma experiência de catarse social aberta a todos que estejam nas arquibancadas. Isso é um legado do mito racista da democracia racial, infelizmente reproduzido também em vozes que se colocam contra às opressões. O espelho nada cristalino da torcida são as tensões sociais. Hoje sequer o tratamento dessas tensões encontra guarida nas estruturas institucionais da maioria dos clubes.
A tarefa que recai sobre os ombros dos torcedores e torcedoras de hoje é fomentar o nascimento de uma esfera pública em torno do clube de acordo com a abrangência e os desafios da nossa sociedade. O nascimento de uma esfera autônoma, sem a tutela do estado. Um ato de ocupação do que está sendo apropriado indevidamente por instituições de fora do futebol. Por exemplo, sem o protagonismo do poder judiciário, que persegue as torcidas, no intuito de formar uma sociedade civil do futebol que opera em prol da higienização social da cidade.
Uma esfera pública em torno do clube pode significar que o diálogo dos torcedores e torcedoras do Sport começam com a torcida, depois com a direção e as grandes mídias; o investimento no recrutamento na Ilha do Retiro de pessoas comprometidas e afirmativas dos princípios igualitários inerentes à noção libertária de união; a produção de mídia para que os torcedores e torcedoras encontrem as torcidas, cuja linha editorial denuncie tratamentos desumanos e fiscalize a gestão do clube; a devolutiva das pesquisas para as torcidas se munirem de ferramentas que as capacitem em gerir seus clubes; o resgate da história do clube, não apenas do olhar dos historiadores com lugar cativo nas narrativas oficias, mas da memória e dos relatos da cultura popular, vale salientar que a perseguição judicial, midiática e da torcida pela própria torcida deve ser amplamente documentada e obviamente faz parte da história do clube; o boicote às mídias que abriram mão dos aspectos construtivos do futebol em troca de uma pobre narrativa policialesca.
Escute, torcedora e torcedor do Sport Clube do Recife, acreditem no seu potencial junto ao clube. Estejam na política, sejam a mídia, a intelectualidade e a administração. Avançar nessas tarefas pode ser a alforria da sentença tão leonina de que o Sport precisa se renovar. São 115 anos de história e isso é só o começo. O futuro do Sport Clube do Recife, uma razão para viver, depende disso. O Sport é uma razão para resistir.
O campeonato pernambucano acontece sem interrupções desde 1905. O Sport estreou em 1916, ganhou essa edição e outras quarenta e uma. No último domingo, dois gols selaram a derrota do Sport no Clássico das Multidões, na Ilha do Retiro. Pela primeira vez o Leão da Praça da Bandeira não se classificou à fase final do estadual, e vai disputar o rebaixamento. Pensando na derrota, não é tão triste quanto o fato de que não há previsão para os torcedores e torcedoras voltarem a ocupar a Ilha do Retiro. Pensando no Sport, não é tão triste quanto o impacto dessa pandemia em nossas vidas. Como pensar em futebol vivendo dessa forma? Nossa vida não é abstrata, as práticas têm cores, lugares, símbolos e gente. Sinto falta e reflito a derrota porque o futebol é também a minha vida. E a esperança de tempos melhores envolve meu time de coração. Até a próxima!