Era o Hotel Cambridge (2016) é uma ficção documental sobre a construção da ordem e da desordem na insurgência dos movimentos sociais de luta por moradia na cidade de São Paulo. Assim como no marcante Narradores de Javé (2003), da mesma diretora, há o enredo da resistência das populações periféricas, cuja arte e a memória são uns dos principais elementos da desordem frente à brutalidade legal. O ex-Hotel Cambridge é uma torre de babel contemporânea no centro de São Paulo, compartilhada por refugiados de diferentes nacionalidades e regiões, expulsos das suas casas pela perseguição política, a guerra e a fome, ou seja, pela ordem, e coordenada pela Frente de Luta por Moradia (FLM), um movimento social nada fictício. Surge uma reflexão fundamental sobre a razão daquela comunidade, ameaçada por um despejo iminente, justamente dos conflitos e desigualdades entre seus habitantes: não seríamos todos refugiados independente da nacionalidade? Árabes, africanos, latino-americanos, nordestinos e paulistas, apesar das particularidades de cada êxodo, se encontram enquanto refugiados no Brasil, um estado que se vende como acolhedor nos fóruns internacionais, mas que persegue brutalmente suas minorias, inclusive as estrangeiras. É contada assim a história da construção de um ideal de nação pela base, a fundação de uma pátria da desordem nos andares da ocupação, a grande personagem do filme. O cortiço de um mundo em ruínas que se reconhece através das diásporas e suas gambiarras. A dinâmica atrativa e a comoção garantidas pelo elenco, formado por atores e atrizes profissionais e habitantes da ocupação, composição também utilizada em Narradores de Javé, formatam as contradições e esperanças do ideal apresentado no filme, distanciando-o de uma abordagem meramente conceitual sobre os conflitos genocidas vivenciados em nossas cidades e amplificando as vozes das vítimas. Os coadjuvantes, considerando o protagonismo do prédio, não são meros tipos sociais, verdades ambulantes dirigidas para provar pontos de vistas enquadrados em determinada classe, grupo social ou alguma mente supostamente privilegiada, mas porta-vozes dos seus próprios caos, das trajetórias dos seus martírios e apostas à procura de ordem e das tácticas disponíveis para provocar a desordem entre os muitos inimigos. É uma função nobre da arte: atestar a ignorância que embasa o ódio da opinião pública sobre as periferias do sistema. São tantas referências de resistência no Era o Hotel Cambridge que se configura um núcleo denso das lutas sociais. O futuro inominável e bravamente construído de inclusivas (des)ordens.
O filme está em cartaz no São Luiz.