Cracolândias, terras onde a princípio há o crack. Como se a droga construísse algo por si só. Como se a droga fosse viva. Uma inimiga do outro lado da civilização. Reproduzindo bárbaros a ser controlados por manobras de guerra legal, da artilharia às equipes sanitárias. Alvejar, saquear e encarcerar. Fazer a limpa para uma nova cidade. Triunfar sobre os viciados, desabrigados, desempregados e imigrantes. Como já foi feito antes por homens que batizaram ruas e palácios. Petrificados nas praças ocupadas pelos refugiados de guerra.
O crack surgiu nas periferias da atual meca do capital. Há 40 anos atrás a cocaína já era ouro nas ruas. Mas a simplicidade do refino diminuiu o preço. E os efeitos ainda mais curtos e intensos da cocaína no cachimbo agravaram o quadro de dependência. Bom para o narcotráfico – uma atividade econômica global sediada nos paraísos fiscais – e para as bolsas de valores. Ruim para os laços comunitários e ancestrais dos bairros, cuja maioria é negra.
Reza a lenda que a droga foi jogada de helicópteros nos subúrbios da Grande Maça. Territórios tão depreciados que incendiar (o seguro) a casa era mais lucrativo que alugá-la ou vendê-la.
Os movimentos negros lutaram pela comunidade. Atos para conscientizar sobre o plano genocida entranhado no narcotráfico e na repressão legal. Atos para reunir a vizinhança retalhada pelo tráfico. Atos para alimentar e vestir uma comunidade empobrecida e caçada pela maior máquina de guerra da qual já se teve conhecimento. Foi fermento para o surto criativo que deu origem ao Hip Hop. Reunião e afirmação dos elementos da cultura marginal das ruas. Força ancestral projetada sobre as ruínas e os corpos no chão. Outras possibilidades além dos cachimbos, das surras, dos experimentos e das execuções.
O que é uma guerra às drogas?
Cocaína não empunha fuzil.
Aparentemente contra o inumano. E sob medida para o totalitarismo contido no cerne da civilização. Para reunir e legalizar agressões de diferentes naturezas através de diferentes meios e em diferentes escalas. Da invasão do México até a limpa da Luz. Em uma guerra ininterrupta do sistema contra os povos tradicionais e as massas urbana e camponesa marginalizadas.
A primeira apreensão de crack no Brasil foi em 91, numa batida no centro de São Paulo. Desde então outros parâmetros para a Boca do Lixo: os tabus e os riscos das cidades brasileiras. O grande arquiteto rebatizou o centro: Cracolândia, inicialmente um agrupamento nômade orientado pelo tráfico no centro paulistano. Cracolândia porque o centro apodreceu. Só a higiene social na causa. Limpar a sujeira (pessoas implícitas) e reabitar com corpos sãos (pessoas explícitas). O estado, a grande mídia e as associações imobiliárias a garantir o tratamento. Nova cidade: vigilância, militarização, cenografia, carrocracia, condomínios, museus e franquias. Singularidades em extinção.
A guerra às drogas na Cracolândia paulistana, assim como qualquer outra, é uma guerra contra o povo.
21 de maio. 976 policiais militares e civis. Atiradores de elite. Grupos tácticos. Helicópteros. Para acabar com a Cracolândia. Mas a Cracolândia não é feita de crack. É feita de gente.
Em Canudos, uma armada moderna massacrou uma massa de flagelados em 1897. A situação social dos inimigos do estado permanece vexatória.
O poder judiciário expediu 70 mandatos de prisão, 60 mandatos de busca e apreensão para desempregados, desabrigados e dependentes químicos, muitos apartados pela família e submetidos à violência do narcotráfico. Nenhum para quem apura o dinheiro obsceno do tráfico ilegal. Oficialmente foram 51 detidos por tráfico de drogas.
A certeza que as balas de borracha, o gás lacrimogênio, o de pimenta, o efeito moral, o efeito penal, a destruição dos abrigos e o saque dos pertences dos desvalidos não tiveram seu expediente último no massacre do povo.
Logo o presidenciável Dória decretou o fim da Cracolândia. Como um dia decretaram o fim dos índios, o fim da dívida externa, o fim dos hospícios, o fim das revistas vexatórias, o fim da escravidão, o fim do estado de exceção. Poucas quadras separavam a ideologia da realidade concreta onde os desmembramentos da Craco já se agitavam.
Enquanto o presidenciável Alckmin profetizava a luz e a redenção no teatro de operações, famílias procuravam por desaparecidos, e os desaparecidos procuravam seus pertences, documentos, receitas, roupas…
Uma demolição foi realizada pela prefeitura sem aviso prévio e com pessoas dentro do imóvel. Diante do abuso do abuso, inclui-se aí uma tentativa da prefeitura de internamento compulsório baseado em premissas vagas, o Ministério Público resolveu prezar pela legalidade. Alveje, prenda e derrube, mas siga o procedimento.
Loucos por vadiagem. Extradição. Castração química. Por isso a Craco Resiste. Alguns (não há adjetivo para tamanha bobagem) veem o crack resistindo, mas onde já se viu isso?
Gente resiste.