Martírio: um grande sofrimento, uma grande aflição. Qual é o limite do sofrimento? Vicent Carelli desafia os parâmetros ao documentar o genocídio enfrentado pelos índios Guarani-Kaiowá, assolados pelo império da civilização e a ganância insaciável do capital. Além do martírio, há resistência perpétua dos apenados, que também desafia o convencional. Em cada depoimento guarani, apanhados geracionais de assassinatos e despejos; a destruição da família, das plantações, a profanação dos encantados, dos cemitérios dos ancestrais. A língua falada nas beiras das estradas, nas bordas dos latifúndios, nos campos de concentração da política indigenista brasileira, aldeias demarcadas pela civilização não para o bem viver, mas para a morte gradual, sítios da peste, do suicídio e da arbitrariedade dos paramilitares do agronegócio. Uma língua sem voz na nação brasileira, pluriétnica apenas alegoricamente, uma nação que veta o direito de existir àqueles que negam a unanimidade em torno da cultura, da religião, da língua, da ideologia, da economia. Quanto menor a subserviência, maior a punição. Quanto menor a ganância, maior a humilhação. É preciso aprender, por bem ou por mal, que a propriedade é um valor supremo, o lucro é uma dádiva e a violência é um dever. A histeria dos cruzados em Brasília durante uma sessão da comissão de agriculta da câmara, em 2013, na iminência de uma chacina no Mato Grosso do Sul, mostra o governo Dilma já nas cordas, cujos principais inimigos paradoxalmente eram também os principais aliados. Enquanto a Funai e os seus estudos antropológicos eram confrontados com a possibilidade do rei da Noruega tomar posse das reservas indígenas, o governo congelava as demarcações, dando sinal verde para o avanço das fronteiras agrícolas sobre os corpos indígenas. Nessas cenas, o filme capta no centro do poder e no contemporâneo a continuidade do maior crime da civilização, reivindicar para si o martírio, apagar as vítimas na inversão da história, inviabilizar a resistência a partir da legalidade da destruição do outro, cuja paz e o fim do martírio é o fim do subalterno. Como essas cenas há outras, em outros tempos, com outros motes. Da mesma forma, que Guarani-Kaiowá reinventa e aperfeiçoa sua resistência, também ricamente documentada no filme. Martírio, um documentário convencional, renova a urgência da revolta contra o estabelecido, o oficial, o palaciano, o marcial, a ordem, o convencional. Renova a necessidade da escuta dos povos tradicionais, da construção de concepções políticas, econômicas e sociais além do PIB e das grandes cidades, entre outros colossos da civilização e horizontes da convencional sociedade brasileira. Que as forças da terra, do céu, das águas, dos encantados, das narrativas, imagens e resistências orientem Guarani-Kaiowá para a morada dos seus ancestrais. Martírio está em cartaz no São Luiz.