Sport, uma razão para resistir – Chegando lá na Ilha do Retiro

Em Homenagem aos 83 anos da Ilha, eu, o Profeta Gosma, escrevi uma série de três ensaios. Sport, uma razão para resistir é o título da série. Até o final desse mês de aniversário estarão todos aqui no Blog da Aconchego. Começamos com A Ilha. E agora vem o do meio: Chegando lá na Ilha do Retiro.

No primeiro trimestre de 2020, para algumas analistas, chegamos ao século XXI. Os 2000 tomaram forma de isolamento social. O passeio público foi fechado e as multidões proibidas. Um fenômeno com essa escala nunca será esquecido por quem o viveu, ainda que o legado seja um mistério.

Os estádios de futebol foram fechados em todo mundo. Não sabemos se o que voltou no início do segundo semestre é realmente o futebol. No Brasil a volta do jogo foi precipitada por pressão do autoritarismo em vigor.

O século XXI, a Era das Confusões, chegará à Ilha no próximo domingo. O clássico das multidões, que inaugurou a Ilha do Retiro há 83 anos, aprofundará uma realidade insólita para os torcedores e torcedoras: a normalidade do futebol indisponível para as torcidas.

Independente do vírus, estádios podem ficar vazios, mesmo abertos, por desinteresse ou falta de condições da maioria para bancar o custo total do jogo: ingresso, transporte e alimentação. E isso necessariamente não são problemas para os cartolas. Têm clubes nas principais divisões do país, por exemplo, que são de empresários, não de torcida; têm clubes, que de tão caro os ingressos, não se aplicam totalmente na ocupação integral do estádio, arrecada-se mais subutilizando o estádio do que tornando-o mais acessível. Os estádios também podem ser fechados como medida legal de punição.

 Quando a Ilha estava aberta, era uma maioria de torcedores e torcedoras populares que davam vida ao futebol. As torcedoras especialmente vinham ocupando mais a Ilha, um fenômeno percebido em outras regiões do país. Não é raro que o relacione aos processos recentes de modernização dos estádios brasileiros, a arenização. No entanto, a Ilha resiste a esse processo, é um estádio tido como inadequado para clubes grandes com alguma ambição. É uma indicativo de que a afirmação dos grupos depende em última instância das suas lutas.

Nesse sentido, o conflito em movimento influencia a concepção de uma infraestrutura, que espelhará tensões sociais. Mas não é plausível imaginar que as novas arenas possibilitaram o aumento da presença de públicos historicamente renegados no estádio. A maior presença feminina muito provavelmente independe da modernização dos estádios.  

E não serão os estádios chamados de ultrapassados ou as novas arenas que farão o reconhecimento de que as torcidas, inclusive as do Sport, não obedecem a uma sexualidade binária, por exemplo. As arquibancadas podem ser tão reacionárias que esse reconhecimento hoje é praticamente impossível. As poucas e audaciosas torcidas em defesa da diversidade sexual mantém viva a possiblidade.

A cada manifestação das coletividades que compõem a torcida do Sport contra a noção equivocada da torcida como um bloco homogêneo em que as diferenças e desigualdades desaparecem, percebemos o tanto de democracia que ainda falta construir nos estádios. O ato de torcer é um fenômeno contagiante em grande medida pela diversidade entre torcedores e torcedoras; as torcidas são vivas e exuberantes por expandir a subjetividade dos seus membros e pautar os ambientes sociais que ocupam. Não permitem a indiferença.

As experiências de torcedoras e torcedores assíduos no estádio muitas vezes é de transe e subversão das barreiras sociais. Bradar o Cazá e soltar o grito de gol enaltecem o Sport ao chamar atenção para a possível e desejada sincronia das vozes na torcida, não a sua indistinção.

Por isso, há de ser criticado o alinhamento da direção de qualquer clube com as violências enfrentadas por sua torcida. Torcedores e torcedoras não são meros figurantes de um espetáculo que infelizmente, para muitos do meio, não possui relação com a política. Dessa maneira, parece que a irracionalidade dessa colocação dissimula a restrição das decisões do clube a um bloco homogêneo e privilegiado, cujo objetivo é reverter a potência democrática das arquibancadas.  

Por mais que as torcidas deem seu testemunho histórico contra as opressões sociais, o futebol continua a se destacar em matéria de autoritarismo. Dá a impressão de que as conquistas na esfera pública chegam diluídas ao futebol; que a repercussão das pautas progressistas, mesmo se protagonizadas por torcidas em protesto nas ruas, pouco pertencessem aos estádios. Talvez ainda se faça presente a ideia de que o futebol é um campo autônomo da vida social, onde a violência institucional, o xingamento e o linchamento apenas fazem parte. Chega de truculência! Vai se apresentando com urgência a tarefa de construir a democracia nos clubes pelos quais as torcidas entregam suas emoções mais sinceras. E no ritmo acelerado em que as torcidas estão sendo expulsas dos estádios, por conta da arenização agora acrescida da tendência de novos paradigmas para as multidões, é caso de vida ou morte.  

Chegando lá na Ilha do Retiro, vemos que a urbanização pesada do entorno costuma concentrar parte relevante da torcida, que trabalha, mora, estuda ou passa perto do estádio. As partidas de modo geral são precedidas por eventos cotidianos que impactam os fluxos e o comportamento dos torcedores e torcedoras. O ânimo e a preparação para as partidas são intensificados quando o lazer precede os jogos, por exemplo. Já o final de expediente é correria para os que arriscam chegar no estádio mesmo depois do apito inicial. Imagina-se um sacríficio menor quando os torcedores se deslocam da praia ou de um encontro com a família. Sem dúvidas que o direito ao lazer não é compartilhado igualmente. Nesse sentido, a presença feminina no estádio é prejudicada pelas atribuições extenuantes geradas todos os dias. Partidas em horários bizarros são ainda mais graves para acolhida desse público.

Sacrifício é o cotidiano das torcidas no Brasil. Maiores ou menores, nunca ausentes. Há anos observando torcedores e torcedoras nos ônibus, entorno e instalações do estado, sinto e testemunho o sacrifício que é estar ali. 

A torcida do Sport é uma das maiores torcidas do nordeste. São milhões que a declara, cuja maioria é da classe trabalhadora, não brancos e mulheres. Se os torcedores e torcedoras não reproduzem parcialmente essa maioria na ocupação do estádio e se dá simplesmente o inverso na política do clube, não são as barreiras sociais que impedem?

O fechamento do cerco sobre as torcidas é demonstrado, por exemplo, num ambiente crônico de apropriação indevida dos recursos do clube por um punhado de famílias que se alternam na administração e de discussão legislativa para refundar os clubes em empresas. Nesse sentido, não é improvável que um dia o Sport venha a ter um dono. No entanto, entre a torcida não é raro encontrar uma esperança desesperada a favor da privatização do Sport, delirante expectativa de um Sebastião.

O povo brasileiro ainda não cumpriu a tarefa histórica de construir uma sociedade igualitária e justa. Do governo presidencial tomou posse um projeto de retrocesso da pouca democracia que foi possível construir. A maioria dos clubes já agiam de forma semelhante e agora encaminham soluções definitivas. Assim o destino da Ilha permanece segregado, onde ricos tomam assentos com atendimento e estruturas exclusivas, e aos pobres poderão deixar de ser oferecidos até mesmo o concreto e as instalações insalubres.

O autoritarismo nos estádios, tão comum de forma que quaisquer demanda insurgente é passível de linchamento pela polícia militar, segurança privada e elementos da própria torcida, não serão tratadas pela arenização. Dessa forma, as direções continuam a impedir os torcedores e torcedoras de se apropriarem da história dos seus clubes.

O estímulo ao torcedor folclórico representante da síntese de um povo dócil em formação, ao dar seus ares de civilidade e sacrifício no estádio; exemplar na exploração de uma imagem internacional de que o Brasil é um nação em que o povo é reconhecido pela sua irreverência, não pela sua revolta; de um ideal das classes oprimidas, fornecido pela ideologia dominante, da qual o rico pode se aproximar e estranhamente se sentir mais um, vai sendo substituído pela imposição de uma relação entre consumidor e prestador de serviço. Já exigências mínimas de segurança, conforto, higiene, igualdade de tratamento e liberdade de expressão na Ilha do Retiro, continuam sendo vistas como enxerimento.

O totem do Leão é subdividido, os seus significados refletem as experiências de cada indivíduo e coletivo que compõem a torcida. O Sport, apesar de ser tudo, não criou o mundo. Sua existência está atrelada às contradições sociais. Longe de ser uma fragilidade, é o traço de uma esfera social capaz de amplificar dinâmicas fundamentais à sobrevivência da cidade.

Em 1950 o Brasil sediou sua primeira Copa do Mundo. A destruição da Europa na Segunda Guerra Mundial favoreceu uma sede na outra margem do atlântico. A dificuldade financeira das nações europeias e o receio das longas viagens que enfrentariam no continente americano levaram algumas nações classificadas e convidadas à desistência. Dos três jogos planejados na Ilha, reformada para competição, houve apenas um. A seleção estadunidense havia protagonizado a maior zebra da história do futebol em Belo Horizonte, ao vencer a inventora do futebol e campeã mundial, a poderosa Inglaterra. Em seguida, na Ilha do Retiro, os Estados Unidos foram goleados pela seleção do Chile[1]. Então como é?!

Próximo ensaio: Com o Sport eternamente estarei…


[1] Para mais informações sobre esse confronto histórico e mais histórias recifenses: https://vozesdazonanorte.blogspot.com/2013/01/ilha-do-retiro-palco-da-copa-do-mundo.html.