Baú do Profeta

Profeta Gosma no blog da Rádio Aconchego, serão textos inéditos, resgatados, experimentações literárias e as contribuições de outras autoras e autores. P. Gosma tem alguns anos de blogosfera, no entanto de frequência inconstante e visualizações ainda mais raras. Vamos começar por Seráfico, que aborda a desumanização no processo de decadência dos centros comerciais urbanos. Surgiu das andanças aflitas pelos bairros da Boa Vista e São José, diante de uma miríade de imóveis vazios. O título e o término foram inspirados na minha primeira ida ao urologista. Seráfico é em nome das pessoas em situação de rua e dos animais abandonados. O Recife, onde a fome e a nostalgia se confundem entre ruínas, é cinza, fedorento e vertiginoso numa tentativa de narrar a miséria. Seráfico é de 2015, hoje assume a sua versão definitiva. Boa leitura!

(Em sequência uma crônica clássica de Drummond, Debaixo da Ponte, de 1967)

SERÁFICO
I
Uma réstia na parede bamba de cores desbotadas e sobrepostas, gama da euforia à depressão, cujo teto guardou família de dispensa cheia e alpendre florido, cuidada por domésticos fardados, onde hoje adentram gotas fumegantes que corroem a pele esverdeada de catadores que palmearam o dia e a noite em busca de alumínio, vestidos com andrajos de defuntos sem lápide – o que a matéria obriga é a sua essência – para finalmente desmaiar sobre ilhas de papelão cercadas de latas por todos os lados e espreitar a milhar o dia nos espasmos do inconsciente. Uma vez por dia o poente dilata os desprazeres. A centelha de querosene sobrevive e mais quase nada.
II
A Incrível Transmutação da Prosperidade em Depressão, venham conferir! No centro decadente mais próximo de você. Anunciam cartazes em cinemas, bares e teatros fechados e difusoras abandonadas nos postes. Ex-burgueses tremem a cuia para imobiliárias destruírem tudo ao seu redor e assim reerguerem suas vidas, para retirar os filhos inadimplentes do colégio do Tio Patinhas; oferecer aos idosos espoliados e socados no pior cômodo do casario estropiado uma dormida limpa; pintar os cabelos de cores desbotadas e sobrepostas da mulher; descansar o marido dos subempregos de frentista, cliente oculto, entrevistador, cobaia, garçom, entregador e segurança. A superdosagem do controlado vencido permite incursões breves ao passado benfazejo da quermesse carmelita, do Recife magia nos dias de carnaval, dos importados, dos empregados, agregados e criados, do engenho e dos pretos de vô, da madeira de lei, dos primos sádicos da fazenda, do vapor para a Europa, do piano… de volta à realidade de espelhos trincados e punhos ensaguentados. A maldita fé no asfalto resiste à morbidez da cidade, corroída pela marcha triunfal sobre os casebres, terreiros e capelas, pela adoração às tábuas de salvação guardadas em pastas executivas. A tarja permanente nos olhos das crianças sob o viaduto não importa onde a fome e a nostalgia se confundem entre ruínas.
III
As igrejas de Roma, mães do centro, em virgília perpétua ao público e ao privado para a remoção dos lazarentos e o milagre da multiplicação de empreendimentos abarrotados de dizimistas adultos e as suas crianças para o gozo dos pervertidos de batina demais aborrecidos com as crianças viciadas em cola e as suas crises de abstinência e as cobranças abusivas a cada serviço prestado ali mesmo na sacristia, ao lado da calçada loteada entre refugiados estrangeiros ou não, vizinhos das latrinas estouradas, das paredes encharcadas de urina, do chafariz pantanoso a civilizar os sentidos. Daí o torpor a misturar feições, comportamentos, edificações. Ali na vitrine são mercadorias ou pessoas? Em cima da ráfia imunda estendida na grama da praça são criaturas ou pertences abandonados por seus donos? Estilhaços refletem a centelha de querosene diante de uma miríade de imóveis vazios. Um cão de olhos vazados tosse a sua vontade de morrer. Em letras apagadas, lê-se Dr. Seráfico Jr., Urologista.

DEBAIXO DA PONTE

Moravam debaixo da ponte. Oficialmente, não é lugar onde se more, porém eles moravam. Ninguém lhes cobrava aluguel, imposto predial, taxa de condomínio: a ponte é de todos, na parte de cima; de ninguém, na parte de baixo. Não pagavam conta de luz e gás, porque luz e gás não consumiam. Não reclamavam contra falta d’água, raramente observada por baixo de pontes. Problema de lixo não tinham; podia ser atirado em qualquer parte, embora não conviesse atirá-lo em parte alguma, se dele vinham muitas vezes o vestuário, o alimento, objetos de casa. Viviam debaixo da ponte, podiam dar esse endereço a amigos, recebê-los, fazê-los desfrutar comodidades internas da ponte. À tarde surgiu precisamente um amigo que morava nem ele mesmo sabia onde, mas certamente morava: nem só a ponte é lugar de moradia para quem não dispõe de outro rancho. Há bancos confortáveis nos jardins, muito disputados; a calçada, um pouco menos propícia; a cavidade na pedra, o mato. Até o ar é uma casa, se soubermos habitá-lo, principalmente o ar da rua. O que morava não se sabe onde vinha visitar os de debaixo da ponte e trazer-lhes uma grande posta de carne. Nem todos os dias se pega uma posta de carne. Não basta procurá-la; é preciso que ela exista, o que costuma acontecer dentro de certas limitações de espaço e de lei. Aquela vinha até eles, debaixo da ponte, e não estavam sonhando, sentiam a presença física da ponte, o amigo rindo diante deles, a posta bem pegável, comível. Fora encontrada no vazadouro, supermercado para quem sabe freqüentá-lo, e aqueles três o sabiam, de longa e olfativa ciência. Comê-la crua ou sem tempero não teria o mesmo gosto. Um de debaixo da ponte saiu à caça de sal. E havia sal jogado a um canto de rua, dentro da lata. Também o sal existe sob determinadas regras, mas pode tornar-se acessível conforme as circunstâncias. E a lata foi trazida para debaixo da ponte. Debaixo da ponte os três prepararam comida. Debaixo da ponte a comeram. Não sendo operação diária, cada um saboreava duas vezes: a carne e a sensação de raridade da carne. E iriam aproveitar o resto do dia dormindo (pois não há coisa melhor, depois de um prazer, do que o prazer complementar do esquecimento), quando começaram a sentir dores. Dores que foram aumentando, mas podiam ser atribuídas ao espanto de alguma parte do organismo de cada um, vendo-se alimentado sem que lhe houvesse chegado notícia prévia de alimento. Dois morreram logo, o terceiro agoniza no hospital. Dizem uns que morreram da carne, dizem outros que do sal, pois era soda cáustica. Há duas vagas debaixo da ponte.

ANDRADE, Carlos Drummond de. Debaixo da ponte. In: Obra Completa, Rio de Janeiro: José Aguilar Editora, 1967, p. 896-897.