Transcrição originalmente publicada em Orucum.
Eu não tenho nem condições de expressar a vocês o quanto estou emocionada por estar aqui nesta noite. Para mim, é assim que deveria ser a aparência da universidade. Quero agradecer à Ângela Figueiredo, ao Odara. Quero agradecer também ao NEIM pelo convite para homenagear o dia 25 de julho. Essa é minha quarta visita a Bahia e sexta ao Brasil.
Neste momento, me sinto extremamente envergonhada por ainda não ter aprendido português. Esse é o meu próximo projeto. Estou muito feliz por estar aqui celebrando com vocês o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Na Bahia, o Julho das Pretas. Estou muito entusiasmada por estar aqui no Brasil, especialmente porque tenho acompanhado os acontecimentos que vêm se desenvolvendo dentro do movimento das mulheres negras.
Me parece que, neste momento, o movimento das mulheres negras brasileiras representa o futuro do planeta. As mulheres negras brasileiras têm uma história extensa de envolvimento em lutas pela liberdade. Como tem sido simbolizado, por exemplo, pela Irmandade da Boa Morte. O conceito de Boa Morte nos convida a imaginar a imagem de um futuro melhor. Isso me leva a reconhecer as amplas contribuições das mulheres negras no Brasil e na Bahia no contexto da cultura religiosa.
Durante a minha visita, fui honrada com a possibilidade de atender uma oficina oferecida na Irmandade e também de passar um tempo na Roda de Samba da Dona Dalva. Tive a oportunidade de aprender sobre o trabalho de Dona Dalva na preservação do samba de roda. Recentemente ela recebeu um título de doutora honoris causa pela Universidade Federal do Recôncavo Baiano.
Também tive a oportunidade de me encontrar e conhecer a Ebomi Nice. Quero também ressaltar que há alguns anos fui honrada com um convite para conhecer o terreiro de Mãe Stella de Oxóssi e me encontrar com ela, que me disse sobre seus esforços a fim de preservar a cultura e a religiosidade dentro das tradições baianas e que as mulheres negras estão no centro dessas tradições.
Como foi dito por Dulce Pereira, já venho ao Brasil desde 1997. Nunca vou me esquecer do encontro que ocorreu em outubro daquele ano, em São Luís do Maranhão. Tive a oportunidade de encontrar Luiza Bairros pela primeira vez. O espírito de Luiza Bairros continua presente. Também encontrei pela primeira vez Vilma Reis e tantas outras mulheres negras maravilhosas, as quais continuo a me encontrar todas as vezes que venho ao Brasil.
A atual visita, organizada pela professora doutora Ângela Figueiredo, foi um encontro organizado em um contexto mais amplo, um curso em Cachoeira sobre o feminismo negro decolonial. Quero agradecer a Ângela — toda vez que alguém chama por ela, eu também olho — por me convidar para voltar a Bahia várias vezes. As pessoas me perguntam se eu já fui ao Rio de Janeiro, a São Paulo. Não, mas eu venho a Bahia de novo, de novo e de novo.
Menciono essa escola porque ela reuniu estudantes negras do Brasil, América do Sul, África do Sul, Canadá, Estados Unidos e Porto Rico. Ao fazê-lo, produziu concepções importantes que poderiam não ter sido disponibilizadas se esse encontro não tivesse ocorrido. Todas nós, que tivemos a oportunidade de estar aqui, vindouras de outras partes do mundo, temos muita sorte de estar aqui neste momento, onde o ativismo de mulheres negras está em um nível elevado e pungente.
Como já foi dito e reiterado várias vezes, o movimento social liderado por mulheres negras é o movimento social mais importante do Brasil. Após o golpe antidemocrático que resultou na deposição de Dilma Roussef, as mulheres negras criaram a melhor esperança para este país. Muitas de nós, nos Estados Unidos, estamos entusiasmadas acompanhando a Marcha das Mulheres Negras no Brasil desde novembro de 2015. Nós continuamos a sentir as reverberações dessa Marcha. Agora estamos no Julho das Pretas.
Este é um momento difícil para o nosso planeta por vários motivos, mas, sobretudo, por termos uma guinada à direita na Europa, nos Estados Unidos, na América dos Sul e especialmente no Brasil. Não tenho nem como começar a explicar para vocês qual é o sentimento de morar nos Estados Unidos onde Donald Trump é presidente. Mas não devemos nos esquecer que, um dia após a posse de Trump, o movimento de mulheres levou para Washington três vezes mais pessoas que o número que participou da cerimônia de posse. Estima-se que mais de cinco milhões de pessoas participaram da Marcha das Mulheres contra Trump no mundo, inclusive na Antártida.
A Marcha das Mulheres em Washington foi liderada por mulheres negras, latinas, asiáticas, indígenas, muçulmanas, e também mulheres brancas. Nos encontramos em Washington, por todo o mundo e todos os países, para dizer que nós resistiremos. Todos os dias da presidência de Trump, nós resistiremos. Nós resistiremos ao racismo, à exploração capitalista, ao hetero-patriarcado. Nós resistiremos ao preconceito contra o Islã, ao preconceito contra as pessoas com deficiência. Nós defenderemos o meio ambiente contra os insistentes ataques predatórios do capital. Aqui em Salvador, no dia 25 de julho, dedicado às mulheres negras na América Latina e no Caribe, afirmamos ainda de forma mais forte: com a força e o poder das mulheres negras dessa região, nós resistiremos.
Sabemos que as transformações históricas sempre começam com as pessoas. Essa é a mensagem do movimento Vidas Negras Importam (Black Lives Matter). Quando as vidas negras realmente começarem a ter importância, isso significará que todas as vidas têm importância. E podemos também dizer especificamente que, quando as vidas das mulheres negras importam, então o mundo será transformado e teremos a certeza de que todas as vidas importam.
As lutas das mulheres negras estão conectadas com as lutas de pessoas oprimidas em todas as partes. Com aquees que dizem “não” às políticas anti-imigratórias de Trump e à construção de seu muro. Com aqueles que dizem “não” ao apartheid e ao muro que separa Israel da ocupação Palestina. Com aqueles que dizem “não” ao racismo e à misoginia na Colômbia. Com aqueles que dizem não ao sistema de castas na Índia. Estamos em solidariedade com as mulheres Dalits em suas comunidades. Com aquelas que dizem “não” à violência cotidiana, doméstica e íntima, que incide sobre as mulheres negras e que, geralmente, são impostas a elas por homens negros.
Finalmente as mulheres negras têm sido reconhecidas pelo trabalho em manter as chamas da liberdade acesas. Não é o tipo de liderança que visa dar visibilidade ou poder a indivíduos, baseada em carisma, o individualismo masculino carismático. Mas é o tipo de liderança que enfatiza as intervenções coletivas e apoia as comunidades que estão em luta. A liderança feminista negra é fundamentalmente coletiva.
Tanto no Brasil quanto nos Estados Unidos, reconhecemos a importância de confrontar a violência de estado. Enquanto o racismo está saturando todas as instituições — nas questões da moradia, do emprego, da saúde e da educação — e pode ser mais dramaticamente reconhecido nos sistemas policiais e punitivos. As mulheres negras têm liderado ações contra a violência do estado, a violência policial e o racismo dentro do sistema carcerário, tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil.
Tenho falado sobre a liderança das mulheres negras, mas eu deveria estar me referindo, na verdade, à liderança feminista negra. É necessário enfatizar a condição da mulher negra na perspectiva de gênero e de raça, reconhecendo que também está implicado nisso classe, sexualidade e gênero, para além da convenção binária. Nosso foco está nas mulheres negras empobrecidas, inclusive as que estão encarceradas, as queer, as trans, as com deficiência. Mas também estamos conscientes que não focamos na mulher negra a partir de um arcabouço separatista, porque as mulheres negras também estão se engajando nas lutas de outros grupos. Às vezes ao ponto de elas serem excluídas desses movimentos.
As mulheres negras estão entre os grupos mais ignorados, mais subjugados e também os mais atacados deste planeta. As mulheres negras estão entre os grupos mais sem liberdade do mundo. Mas, ao mesmo tempo, as mulheres negras têm um trajetória histórica que atravessa fronteiras geográficas e nacionais de sempre manter a esperança da liberdade viva. As mulheres negras representam o que é não ter liberdade sendo, ao mesmo tempo, as mais consistentes na tradição, que não foi rompida, da luta pela liberdade, desde os tempos da colonização e escravidão até o presente.
Lembremo-nos de Rosa Parks, que sempre enfatizou que queria ser lembrada como uma mulher poderia ser livre, de tal forma que todas as pessoas pudessem ser livres. Lembremo-nos de Lilian Ngoyi, líder do movimento anti-apartheid na África do Sul, que disse, em 1956, entre as suas irmãs: “Agora que atingiram as mulheres, vocês acionaram um trator e serão esmagados”.
Carolina Maria de Jesus nos lembrou que a fome deveria nos levar a refletir sobre as crianças e sobre o futuro muito antes de o conceito de interseccionalidade ser utilizado. Lélia Gonzales insistiu que não só deveríamos compreender a complexa inter-relação de raça, classe e gênero, mas que deveríamos ter em mente as conexões entre os povos indígenas e os povos negros. Essa são as lições que nós dos Estados Unidos precisamos aprender com a história do feminismo negro no Brasil.
O que me leva a levantar o próximo ponto. Existe, geralmente, a pressuposição de que a forma mais avançada de feminismo negro é encontrada nos Estados Unidos. É verdade que há muitas figuras norte-americanas reconhecidas pelo desenvolvimento do feminismo negro. Isso não deveria se dar pelo entendimento de que nos Estados Unidos estamos mais avançados. Essa é uma visão colonialista e imperialista. Na verdade, isso ocorre porque as ideias, sejam elas conservadoras ou radicais, circulam com mais facilidade a partir dos Estados Unidos do que as ideias que emanam do Brasil. Não posso me levar tão a sério assim. A meu respeito, gosto sempre de ressaltar que ninguém jamais conheceria meu nome se pessoas de todo o mundo, inclusive do Brasil, não tivessem se organizado para exigir minha liberdade, no princípio dos anos 70.
É verdade que cada uma dessas viagens que fiz ao Brasil têm me trazido novas perspectivas. Desde a primeira conferência de Lélia Gonzales, em 1997, no Maranhão, até a escola do feminismo negro decolonial da qual participei agora. A partir disso, passo a questionar o meu papel em trazer o conhecimento feminista negro para o Brasil. Passei a perceber que nós, nos Estados Unidos, somos aquelas que precisamos aprender com os conhecimentos e as perspectivas que são produzidas pela longa história de luta feminista negra brasileira.
Precisamos aprender sobre o poder feminista negro preservado dentro da tradição do Candomblé. Precisamos aprender sobre os movimentos organizados por mulheres negras trabalhadoras domésticas na Bahia e no Brasil. Tive o privilégio de conhecer Marinalva Barbosa, que é a presidente do sindicato de trabalhadoras domésticas da Bahia. Temos muito a aprender com a atividade dessas mulheres.
Nós ainda não conseguimos nos organizar de uma maneira bem sucedida através de sindicatos dessa categoria nos Estados Unidos, apesar do fato de que mulheres negras, trabalhadoras da limpeza, terem organizado uma greve em 1881, em Atlanta, na Geórgia. Mesmo apesar do fato de que nos anos 20 e 50 tenham havido esforços, que não tiveram sucesso, de organizar sindicatos dessa categoria. Não é uma coincidência que Alicia Garza seja uma das mulheres co-fundadoras do movimento Vidas Negras Importam. Mesmo assim, ainda não temos um sindicato de trabalhadoras domésticas.
Deixem-me compartilhar com vocês algumas palavras sobre o complexo industrial carcerário. O Brasil tem a quarta maior população carcerária do mundo, estou correta? Sendo a primeira nos Estados Unidos e depois vêm Rússia e China. Os Estados Unidos está aprisionando um quarto da população carcerária de todo o mundo. Se olharmos para a população carcerária feminina, um terço está encarcerada nos Estados Unidos.
Se tivéssemos tempo esta noite, poderíamos falar mais aprofundadamente sobre como essa população carcerária reflete o capitalismo global e como esse sistema negligencia as necessidades humanas. Essas pessoas não tem acesso a moradia, educação, saúde ou qualquer outro serviço que seja necessário para a sobrevivência. A rede carcerária mundial constitui um vasto depósito onde pessoas consideradas desimportantes são descartadas como lixo. Aquelas tidas como as menos importantes são as pessoas negras, do sul global, muçulmanos e muçulmanas, indígenas.
Quando nós trabalhamos e lutamos contra a violência do estado manifestada através de práticas policiais e de encarceramento, afirmamos que as vidas negras importam, que as vidas indígenas importam. A professora Denise Carrascosa, aqui da UFBA, tem liderado um projeto de mulheres dentro do sistema carcerário chamado “Corpos indóceis e mentes livres”, um projeto entusiasmante que reúne mulheres encarceradas de tal forma que elas possam dramatizar as suas realidades, as suas vidas.
Esses são os tipos de projeto inovadores que produzem conhecimentos feministas sobre a relação entre a liberdade e a falta de liberdade. Acabei de ser informada que a professora Carrascosa tem sido impedida de entrar no complexo penitenciário feminino porque ela se juntou a outras encarceradas para protestar contra o tratamento punitivo aplicado a uma mulher que foi trancafiada, sendo-lhe negado o uso de medicamentos pós-operatórios.
Em função da professora Carrascosa ter levantado a sua voz, seu projeto, que já dura sete anos, foi barrado. O que vocês farão em relação a essa situação? Quero sugerir que vocês peçam a cada uma das pessoas aqui presentes para assinar uma petição exigindo que esse projeto seja reincorporado. Sabemos que nos últimos dez anos houve um aumento de 500% na taxa de encarceramento de mulheres e que dois terços de todas as mulheres que estão encarceradas no Brasil são negras.
Isso me leva aos meus últimos dois pontos. Um deles é a questão da reprodução da violência. Nós não podemos excluir a violência doméstica e íntima das nossas teorias sobre a violência do estado e institucional. Frequentemente, agimos como se uma não tivesse relação com a outra e que, se as mulheres negras são vítimas dessa violência cotidiana praticada por seus maridos e namorados, isso significa que os homens e garotos negros são violentos. Como podemos refletir sobre isso?
Nós precisamos nos perguntar qual é a fonte dessa violência que prejudica e fere tantas mulheres negras. Qual é a relação dessa violência com a violência policial e do sistema carcerário? Se essa violência do indivíduo está conectada com a violência institucional e do estado, isso significa que não conseguiremos erradicar a violência doméstica enviando aqueles que a praticam ao sistema carcerário. Se desejamos erradicar as formas mais endêmicas de violência do indivíduo da face da Terra, então devemos eliminar também as fontes institucionais de violência. Este é o chamado para a abolição do encarceramento como a forma dominante de punição para pensarmos novas formas de abordagem para aqueles que são violentados. Este é o chamado do feminismo negro para formas de justiça decoloniais.
Meu último ponto diz respeito aos contantes esforços para conter nossa resistência. Quando nós resistimos, as instituições dominantes e, sobretudo, o estado, tentam conter a nossa resistência. Querem transformar as nossas lutas, em estratégias de consolidação do estado. O movimento pelos direitos civis é agora é reivindicado pelo estado como central em suas narrativas sobre a democracia. Mas o movimento Vidas Negras Importam, principalmente na era Trump, é considerado um insulto.
No Brasil, agora que o mito da democracia racial foi totalmente exposto, a pergunta que se apresenta é se o movimento de resistência das mulheres negras pode ser apropriado. Afirmamos que, na medida em que nos levantamos contra o racismo, nós não reivindicamos ser inclusas numa sociedade racista. Se dizemos não ao hetero-patriarcado, nós não desejamos ser incluídas em uma sociedade que é profundamente misógina e hetero-patriarcal. Se dizemos não à pobreza, nós não queremos ser inseridas dentro de uma estrutura capitalista que valoriza mais o lucro que seres humanos.
Se reconhecermos que aqueles que queriam resolver a questão da escravidão buscavam formas mais humanas de escravização, nós estaremos utilizando a lógica do racismo. Reconhecemos que a reivindicação da reforma do sistema policial e da reforma do sistema carcerário apenas mantêm as estruturas racistas ao mesmo tempo em que finge se importar com as questões raciais.
É por isso que dizemos não ao feminismo carcerário e sim ao feminismo abolicionista. É por isso que nós convocamos essa solidariedade para além das fronteiras nacionais e ressaltamos que o feminismo radical negro decolonial reconhece as nossas profundas conexões, mesmo a medida em que reconhecemos também nossas contradições.
A luta pelo acesso à água no Quilombo Rio dos Macacos vem sendo rotulada como “terrorista”. Tenho aqui em minhas mãos um apelo que vêm do Quilombo Rio dos Macacos relacionada aos seus direitos humanos de acesso à terra e à água que lerei após o evento. Mas o que eu quero dizer é que as lutas que acontecem dentro dessa comunidade estão conectadas às reivindicações para a proteção da água por populações indígenas contra o veneno trazido pelos dutos de petróleo.
Essas lutas estão conectadas também aos esforços que ocorrem em Flynn, Michigan, em expor o envenenamento das águas nas comunidades negras. Essas lutas também estão conectadas com as das comunidades palestinas, engajadas em defender as suas reservas de água, alvo constante das forças militares de Israel. Somente através da solidariedade e da luta, nós poderemos preservar o nosso acesso a água.
Quilombolas, presente!
Finalmente, quero salientar a minha alegria em estar aqui com vocês no Brasil, Bahia, Salvador, celebrando o Dia da Mulher Negra Latina e Caribenha. Mulheres negras representam o futuro. Porque mulheres negras representam uma possibilidade real de esperança na liberdade.